segunda-feira, setembro 18, 2006

COMPROMISSOS PESSOAIS

Diogo chega, dá dois beijinhos no rosto de Camila. Ela já esperava o recuo, afinal houve uma certa resistência em encontrá-la. No entanto, precisava vê-lo, olhar bem nos olhos, depois da queda de quarta-feira. Ele decide tomar café e começam a andar pelo shopping. Não aceitam o cartão dele. Não quer que ela pague. Desiste do café. Mais uma arbitrariedade: ele paga a conta, e ela, o estacionamento. Camila tenta debater, mas é inútil, então, liga o “foda-se” e deixa pra lá. Pensa em sugerir uma caminhada pela Praia de Icaraí. Final de tarde e os dois enfiados dentro de um bloco de concreto!
Antes mesmo de sentarem:
- Acho que vai rolar os States... (com sorriso, sem olhar nos olhos dela)
- É mesmo. E você quer?
- Quero. Não tem nada que me prenda a Niterói.
- Mas você disse que não te atraia a idéia, quando comentou esta possibilidade no seu trabalho.
- É... falei.
Nossa! Será que para não se envolver tem que ir para tão longe. A cidade é grande o bastante para não nos encontrarmos mais. Por que não vai para Sepetiba? Isto é quase lisonjeador! Ele não tem algo mais original para assinalar que a qualquer momento sairá correndo de perto de mim. O pior é que Camila tem certeza do potencial de Diogo para amar. Ela possui aquela loucura dos que são intuitivos que diz “é ele”, embora ela saiba que as pessoas encontram muitos “eles” pelo caminho.
De repente, ela soltou uma bomba:
- Você é instável.
- Nossa! Que horrível!
- Tá, inconstante.
- Pior! Reticente, vai.
- Reticente é muito leve.
- Eu gosto de eufemismos.
- Já percebi...
- Mas, quando eu me decido por algo, vou até o final.
A voz veio tão fraca que nem ele mesmo deve ter se convencido do que disse. Ela fez uma cara de “é mesmo?” E deixou pra lá.
Falaram de tudo um pouco. Da certeza – ela anda cheia das certezas ultimamente – de que ela precisa trabalhar em outro lugar; da reunião com a editora; do projeto da revista. Ela falou do Augusto, sem falar no nome Augusto, do dilaceramento, das intuições que estão se fortificando e a arrebatando doloroso. E deixou escapar que foi noiva. Diogo saltou num misto de surpresa e de alegria de quem recebe um presente em forma de dados. Ele se manifestou com opiniões em todos os assuntos. E, do topo do seu ceticismo, disse que a jovem chegou a um estágio que ele quer chegar: de canalizar o pensamento tão intensamente a ponto de conseguir o que deseja, por isto as coisas acontecem.
Camila, então, do topo do seu misticismo, do topo de sua religiosidade, no sentido latino da palavra, pensava nas coisas que muito quis e não realizou, porque também sabe que o mundo acontece independente de sua vontade, tem noção de sua humilde condição de apenas ser humana. O que ele não entendeu, ou não sabe, é que ela apenas sente que as coisas virão, que as coisas são sem que ninguém as controle.
Ele diz que o homem é capaz de viver sozinho. Trava-se outro diálogo em que entra Baudelaire e seu conceito de flaneur, Benjamim e a idéia de aura, Marcuse – mas este ela não cita. Ela falou de Roland Barthes, para rebater a massagem tailandesa... Distinguiu o erótico do pornográfico. Enfim, falou do poder que existe que mobiliza determinadas pessoas e não outras. E o discurso era tão seguro, tão justo, não pelas citações, mas por já haver conhecido a felicidade e, sobretudo, descoberto na quarta-feira que ela pode ser imensa, apesar de dolorosa. Ela não tem mais medo de perder as pessoas que ama. Sabe que a felicidade está sempre do outro lado da ponte. Não importa em que lado você esteja, é preciso atravessar, tomá-la para si e retornar em paz.
Fatigados dos debates, ambos vão cedendo à carne. No entanto, vácuos deixados pelos atos de carinho ainda vão sendo ocupados por diálogos:
- Você está mesmo muito perturbada.
- Está me assustando um pouco.
- É a força do seu pensamento.
- Vai além do que eu quero.
- Ah, vai... Tudo é dirigido por você.
Ela começa a brincar. Faz proposta de ligar na sexta, monta um diálogo sacana, aludindo à massagem tailandesa, a quimonos. Ele recua discretamente. Impossível não comentar.
- Nossa! Você é muito inteligente! Coisa de aplaudir. (bate palmas) Malandro...
- A segunda a palavra, qual foi?
- Malandro?
- Igual ao seu colega de trabalho?
- Não, ele é mau-caráter. E você não.
- Você não me conhece. Ah!! Eu não disse isto.
- Você também não me conhece. Taí, tenho certeza que você não é, pode ser muita coisa, mas mau-caráter não.
Silêncio.
Caminhando pela praia, sem sol, final de verão, rumores, carros passando, a visão da Baia. Solidão acompanhada... Camila sabe que ele vai fugir e, pior do que isto, ela facilitar, porque tem um compromisso com a felicidade.

Angélica Castilho


Rio de Janeiro, 17.03.2003
Adaptado em 11.0.2003

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